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Gênero

Após anos de retrocesso político e aumento no número de feminicídios, proteção às mulheres vítimas de violência volta a ser prioridade

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Por Elisangela Colodeti e Alexandre Dolabela

“Eu falei com o juiz: ‘você acabou de assinar minha certidão de óbito’. Ali acabou meu chão, acabou minha vida”. Com essas palavras, a mineira Paola Pereira, 40, deixou o julgamento do ex-marido, por tentativa de feminicídio, em 16 de março de 2018. Segundo ela, depois de tentar tirar a vida da esposa e das filhas explodindo um botijão de gás, ele não passou sequer um dia preso. “O juiz falou comigo que ninguém mata ninguém com botijão de gás e um isqueiro, e que não era uma tentativa de homicídio. O que eu tenho é só esse papel, essa medida protetiva que o juiz me deu”. 

Paola afirma que o ex-companheiro não respeita a determinação de afastamento. Ela diz que há cinco anos recebe ameaças e se muda constantemente de cidade, dentro do Estado de Minas Gerias, para proteger a família. “Dentro da delegacia da mulher, em Contagem (MG), o policial falou comigo que eu gostava de apanhar e que estava dando trabalho a eles. ” 

O Ministério Público de Minas Gerais ofereceu uma opção a ela. “Fizeram uma proposta de me tirar do Estado, e mudar minha identidade. Não tinha como eu aceitar, porque só minhas filhas mais novas poderiam ir comigo”, conta Paola. Mãe de quatro filhas, ela diz que, no Sistema Único de Saúde, foi disponibilizado acompanhamento psicológico apenas para ela, não se estendendo às meninas.

“Consequência do retrocesso dos últimos 6 anos” 

A história de Paola ilustra o retrocesso nas políticas públicas de combate à violência contra a mulher. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de casos de feminicídio no Brasil cresceu 6,1% em 2022, num total de 1.437 mulheres mortas. Os acionamentos ao 190, número de emergência da Polícia Militar, chegaram a 899.485 ligações, o que significa uma média de 102 acionamentos por hora.

De acordo com o relatório, o desfinanciamento das políticas de proteção à mulher é um dos principais motivos para o problema. No período (2018 a 2021), foi destinado o menor recurso, em uma década, para as ações de enfrentamento aos crimes de misoginia. A verba destinada caiu de R$100,7 milhões em 2020, para R$9,1 milhões, em 2021. A justificativa para a redução foi a adoção de ‘políticas transversais’, que englobariam diversas áreas de promoção dos direitos humanos, ao mesmo tempo. 

Além disso, medidas como a flexibilização do porte de armas são apontadas por especialistas como fatores agravantes da violência contra as mulheres. Mais de um milhão de novas armas entraram em circulação, segundo dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, publicado em junho de 2022.

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A cientista política Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre a Mulher (Nepem) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que, numa sociedade profundamente marcada pela cultura patriarcal, como a brasileira, a liberação do uso de armas coloca as mulheres em uma situação de risco ainda maior. “A flexibilização aumenta o número de crimes com uso de armas de fogo, especialmente no ambiente doméstico. Esse é um fenômeno já identificado no mundo todo”. 

Os discursos de ódio contra as mulheres também se tornaram mais frequentes. Segundo uma pesquisa feita pela em 2022 pela Central Nacional de Denúncias da Safernet, ONG brasileira de proteção aos Direitos Humanos no ambiente digital, no primeiro ano, o número de casos de ataques por misoginia aumentou 1639,5%. Denúncias de racismo e de xenofobia registraram aumento de 595,5% e 262%, respectivamente. 

Marlise Matos frisa que, apesar de não se poder fazer uma relação de causalidade estrita, o contexto de autorização pública da violência estimulou o incremento das formas de agressão contra as mulheres. “Quando você tem um governante máximo, o presidente de um país, fazendo discursos misóginos absurdos, isso dispara os gatilhos para que outros homens se sintam desresponsabilizados por usar a violência”.

A cientista acrescenta ainda que o aumento da violência se dá como consequência do retrocesso dos últimos 6 anos. “Tivemos, num contexto de pandemia, homens que se viram ameaçados pelo avanço das mulheres. Além disso, um governo que desfinanciou ações de enfrentamento à violência e, ainda, estimulou a misoginia. A gente está vendo o resultado dessa estrutura extremamente perversa. ”

 “Já escapei da morte várias vezes” 

A professora Maria da Penha e Silva, 46, saiu da própria casa, na comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, distrito de Salgueiro (PE), para morar de aluguel, depois que as ameaças do ex-companheiro se tornaram frequentes. “Já estávamos separados, mas ele insistia em voltar a morar comigo. Um dia, eu estava trabalhando, na escola, e ele foi até ao local do meu trabalho dizendo que queria entrar na casa. Nesse mesmo dia, eu levei meus filhos para outro lugar”. 

Enquanto estavam juntos, por oito anos, Maria lembra-se de ter escapado da morte diversas vezes e diz ter sofrido todos os tipos de agressão. “Ele é usuário de drogas e bebe muito. Meu maior medo era de que alguém viesse fazer alguma coisa com meus filhos. Passava noites sem dormir”.

Assim como Maria da Penha, em 2022, mais mulheres sofreram violência dentro de casa. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento de quase 3% no número de agressões em contexto doméstico. Foram 245.713 registros. A quantidade de ameaças aumentou 7,2%, resultando em 613.529 casos. Todos os dias, aproximadamente 670 mulheres foram até uma delegacia para denunciar um episódio de violência no lar.

Na justiça, Maria da Penha teve acesso a uma medida protetiva. Ainda assim, ela vive com medo do descumprimento da Lei, e de ser vítima de novos ataques. “Tenho medo de ele aparecer a qualquer momento”. 

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Segundo especialistas, é assim que vive a maioria das vítimas de violência doméstica no Brasil. Para a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Valéria Scarance, autora do livro “Lei Maria da Penha”, o Brasil está longe de oferecer a segurança necessária para que as mulheres possam viver em paz. Segundo ela, a punição para os crimes de misoginia é considerada  incompatível com a gravidade do problema. “São inúmeros os inquéritos e processos em que ocorre a prescrição. As penas por crimes graves como a ameaça são ínfimas, de poucos meses”, afirma.

Por outro lado, a promotora ressalta a importância de mudanças recentes, como a conscientização popular quanto às diversas formas de violência, a criação de serviços especializados em todos os Estados, o pagamento de pensão especial para órfãos dos feminicídios e alterações legislativas, como no caso da Lei Maria da Penha, de 2006. “Agora as medidas protetivas podem ser estendidas aos dependentes da mulher em situação de violência, não dependem do registro de boletim de ocorrência, nem da existência de um processo civil ou criminal. Elas ficam condicionadas apenas à existência de perigo, ainda que o inquérito seja arquivado, ou o réu absolvido por falta de provas”, explica. 

Uma das maiores conquistas no campo do direito das mulheres, em 2023, foi a inconstitucionalidade do uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Em agosto, a proposta foi aceita, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal. Também foi criada a Campanha ‘Brasil sem Misoginia’ que busca mobilizar a sociedade para mudanças de comportamento, em prol da segurança das mulheres. 

Em casos como o de Paola Pereira, nos quais haja descumprimento da medida protetiva, o programa ‘Casa da Mulher Brasileira’ pode servir como alternativa. Por meio dele, mulheres encontram teto e proteção. Inaugurado em 2015, em Campo Grande (MS), o projeto teve o financiamento ampliado. Até 2026, a expectativa é que haja pelo menos 40 espaços de acolhimento e acompanhamento de vítimas de violência doméstica. Atualmente, existem oito: em Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Boa Vista (RR), São Luís (MA), Salvador (BA) e Ceilândia (DF).

“O juiz falou comigo que ninguém mata ninguém com botijão de gás e um isqueiro, e que não era uma tentativa de homicídio” 

Para que mais direitos sejam garantidos, Valéria Scarance ressalta que, além de investimentos em espaços de proteção, e de iniciativas que facilitem e equilibrem os modos de punição aos criminosos, é preciso incentivar a prevenção à violência. Ela cita o exemplo dos projetos de recuperação dos agressores. “Muitos autores de violência que participam de programas específicos não reincidem”, explica. 

A Ouvidoria da Mulher, pensada e instituída no Conselho Nacional de Justiça, se insere na agenda afirmativa da igualdade de gênero e de raça expressa nas políticas públicas construídas no âmbito do Poder Judiciário. Em 2023, o canal de atendimento da Ouvidoria Nacional da Mulher recebeu, até novembro, 349 manifestações. 

Para a Ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e Ouvidora Nacional da Mulher, Maria Helena Mallmann, as mulheres estão passando a confiar mais nos canais de denúncia, mas ainda há muito o que ser feito. “Ao acolher cidadãos e cidadãs, encaminhamos seus depoimentos e arquivamos dados, com o objetivo de contribuir na formulação das políticas institucionais, bem como de discutir e implementar ideias sobre novas formas de proteção e aumento da eficácia daquelas já existentes”, explica. 

“Recomeço”

Adriana Caeiro, vítima de violência doméstica, se tornou uma ativista pelos direitos das mulheres e escreveu o livro “Parece amor, mas é abuso”. Nele, a terapeuta fala sobre a importância da conscientização. Ela explica que faltam políticas de educação que possam ajudar meninas e mulheres a reconhecer a estrutura machista patriarcal. “Já deveriam ser feitas palestras sobre os tipos de abuso, os tipos de manipulação, para adolescentes, nas escolas. Inclusive, isso é uma coisa que eu tentei fazer e não consegui. Me falaram que é um assunto muito pesado.”

A escritora diz que, enquanto vivia o relacionamento abusivo, a compreensão foi possível a partir da leitura de uma publicação no Facebook. “Era um post dizendo assim: ‘O manual do relacionamento abusivo’. Se ele tinha 10 slides, eu vivia 12. Conforme eu fui lendo, fui me identificando e, então, eu encontrei o nome do que eu vivia”. 

Foram 16 anos de abusos e agressões. Adriana conta que sofreu violência patrimonial, psicológica e física. “Eu fiquei com o olho roxo e ele fez um jogo de manipulação comigo. Ele me levou à delegacia para denunciá-lo. Porém, chegando lá, ele disse que me amava, mas entenderia se eu registrasse a ocorrência. No fim das contas, eu achei que era culpada e o perdoei”.

Apesar das dificuldades e da longa duração da jornada, após quebrar o ciclo de violências, ainda há otimismo e esperança. “A gente acha que não vamos viver sem aquela pessoa, de tanta dependência emocional”, afirma Adriana. “Então eu sempre afirmo que há vida feliz após o abuso. Essa pessoa que agora não vê saída, ela vai conseguir também. Que ela tenha fé, esperança e coragem”. 

Depois de se livrar dos abusos, que duraram 13 anos, Paola encontra nas filhas a força para seguir em frente. “Eu tô conseguindo sobreviver. Deus é mais. Minha menina agora vai se formar, no ensino médio. Tô super feliz, sabe? Estou conseguindo criar as minhas filhas com muita dignidade”.

Respostas 

Sobre as denúncias de Paola Pereira, o juiz disse que o acusado ficou preso cautelarmente por quase três meses, em fato classificado como tentativa de homicídio. Posteriormente, o magistrado afirma que acatou a decisão da promotoria, que alegou desclassificação do crime por falta de provas. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais afirmou que não comenta decisões judiciais. 

A Polícia Civil de Minas Gerais não respondeu diretamente à denúncia de mau atendimento sofrido por Paola na delegacia de Contagem. Informou apenas que prioriza o acolhimento qualificado e humanizado às mulheres vítimas de violência nas 69 delegacias de atendimento especializado do Estado de Minas Gerais. 

Quanto ao protocolo de atendimento e o acolhimento oferecido pelo SUS em casos de agressão doméstica (física e psicológica), a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais informou que está em construção, junto ao Ministério do Estado, uma Nota Técnica Orientadora e Fluxo Geral de Atendimento às Vítimas. O documento deverá ser aprovado na Comissão Intergestores Bipartite (CIB) do SUS-MG, instância deliberativa que reúne representantes do Estado e dos Municípios.

“Quando você tem um governante máximo, o presidente de um país, fazendo discursos misóginos absurdos, isso dispara os gatilhos para que outros homens se sintam desresponsabilizados por usar a violência” 

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Em entrevista à Revista Mátria, Ministra de Estado das Mulheres, Cida Gonçalves, lembra que as escolas precisam ser ambientes seguros para que meninas e meninos aprendam a reconhecer violações 

Revista Mátria (RM) - Quais ações o Ministério das Mulheres pretende implementar para inibir a violência contra as mulheres no Brasil? 

Cida Gonçalves (CG) - A raiz do problema é a misoginia, que é o ódio contra as mulheres. Um outro ponto importante é que a mobilização ‘Brasil sem Misoginia’ faz parte de um conjunto de ações que temos realizado no Ministério das Mulheres. Em março de 2023, retomamos o ‘Programa Mulher Viver sem Violência’, que havia sido suspenso nos últimos seis anos. No âmbito deste programa, anunciamos a implementação de 40 ‘Casas da Mulher Brasileira’, a reestruturação do ‘Ligue 180 - Central de Atendimento à Mulher’, unidades de atendimento móvel para mulheres do campo e da floresta e outras ações que contemplem a diversidade cultural e a dinâmica territorial das mulheres brasileiras.

Em agosto, também lançamos o ‘Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios’, uma iniciativa com ações estratégicas e formativas para uma mudança estrutural da sociedade. O Ministério das Mulheres coordena o Comitê Gestor do Pacto, que reúne 10 ministérios e a Casa Civil para formular, implementar, monitorar e avaliar ações governamentais de prevenção aos feminicídios. 

Temos, ainda, fortalecido o relacionamento com as secretarias de Mulheres estaduais e municipais e temos investido em cursos de formação para órgãos governamentais e para a sociedade civil, a fim de fortalecer as políticas públicas voltadas para a vida e os direitos das mulheres. Somente nos últimos três meses de 2023, lançamos cinco editais, somando mais de R$ 15 milhões, focados em estruturar secretarias de Mulheres e Centros de Referência em todo o país, financiar a compra de tornozeleiras eletrônicas para agressores, investir em projetos de lavanderias públicas e estimular a capacitação em autonomia econômica e empoderamento de mulheres

RM – Como a campanha ‘Brasil sem Misoginia’ coíbe os discursos de ódio na internet contra as mulheres? 

CG - O Ministério das Mulheres está se empenhando em desenvolver ações conjuntas com grandes empresas de tecnologia para combater o discurso de ódio propagado em sites e canais que lucram com os ataques à dignidade das mulheres. É uma ação transversal, que já teve adesão de cerca de 139 empresas privadas e públicas, organizações e movimentos sociais, grupos religiosos, clubes e torcidas organizadas, além de governos e outros ministérios, como Cultura, Transportes e Esportes. Todos se comprometeram a realizar ações de enfrentamento à misoginia. 

Além disso, é uma forma de pautar o debate na sociedade, estimular campanhas de utilidade pública sobre o tema, popularizar a palavra e fazer a sociedade compreender que a misoginia é a raiz de todas as formas de violência e desigualdades contra as mulheres. 

RM - O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres. Como a senhora avalia esta decisão? 

CG - A decisão do STF põe fim a esta argumentação que sempre foi inconstitucional, mas que era amplamente aceita nos tribunais em virtude da estrutura patriarcal e misógina do Judiciário e da nossa sociedade. Essa decisão é um passo no fortalecimento da democracia brasileira.

RM - De que forma o ambiente escolar pode contribuir na luta contra a misoginia? 

CG - O ambiente escolar repete as opressões existentes na nossa estrutura de sociedade, mas ali o terreno é propício para o debate e o enfrentamento dos preconceitos, das discriminações e violências. As escolas precisam ser ambientes seguros para que meninas e meninos aprendam a reconhecer violações, violências e estejam munidas, especialmente elas, de ferramentas para enfrentá-las. Os meninos também devem ser ensinados a respeitar as diferenças e a reconhecer a igualdade de direitos. 

A Lei Maria da Penha também estabelece que o tema seja amplamente discutido no ambiente escolar. É enganoso pensar que a escola não deve tratar de assuntos do cotidiano dos alunos, por vezes, essas meninas só terão na figura das professoras e professores a segurança necessária para romper com situações de abusos. 

Recentemente, um estudo da Unicamp apontou que, de 36 ataques armados a escolas desde 2001 no Brasil, 100% dos autores eram homens e a maioria das vítimas (60%), mulheres. Em setembro de 2023, veio à tona um vídeo de alunos de Medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa), em São Paulo, que chocou o Brasil e jamais pode ser normalizado — os estudantes exibiram as partes íntimas e fizeram atos obscenos durante um jogo de vôlei feminino. Isso deve ser combatido com o rigor da Lei, mas também por meio da educação, seja por protocolos e parceria com o Ministério da Educação, seja por meio de campanhas educativas.

MISOGINIA Segundo o dicionário Priberam, o significado de misoginia é: aversão ou desprezo pelos indivíduos do sexo feminino.

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